Hoje, e porque te senti em baixo, num daqueles dias em que a tristeza nos ataca, nem sabemos bem porquê, se por sermos fortes todos os dias, ou simplesmente porque somos mulheres e tem dias que as nossas emoções estão ao rubro, e os nossos sentimentos mais profundos, as nossas sombras escondidas e reprimidas, lá num cantinho em que as escondemos para não nos lembrarmos delas, nesses dias aparecem à superfície dessa fortaleza que somos.
Hoje senti-te assim, e por isso te
escrevo, talvez porque também eu, esteja nesses dias.
Deixaste que esse teu orgulho, e as
tristezas desse teu coração magoado vencessem.
Disse-te uma vez (talvez nem lembres), não
esqueças nunca, que tens uma mãe e irmãos.
Hoje, já não a temos, mas volto a
dizer-te, tens irmãos, e tens-me a mim, a mana velha. Sempre!
Voltando no tempo, lembrando a infância, a
adolescência, porque nestes meus dias de tristeza, angústia e saudades, saudades
da mãe, de ser criança, de quem tive e se foi como uma folha ao vento, apenas
saudades, saudades de mim, do que fui e não serei mais, dos dias que não serão
mais iguais, saudades… nestes dias em que todas as memorias vêm em
corrupio à minha cabeça, e com a experiência da vida, o conhecimento que
só se tem depois de viver, hoje sei que te magoamos. Que tens magoas difíceis
de apagar, mas todos os irmãos, são assim, até aqueles que sempre viveram
juntos, são maus uns para os outros. mas é só naqueles momentos, depois passa,
hoje acho que sabes isso, mas naquela altura não sabias, era apenas uma criança,
afinal eramos todos e magoamos-te porque era mesmo assim. Nós não tínhamos nada
e tu? Tu eras , uma menina acostumada com tudo, a quem nunca privaram de
nada, e de um momento para o outro foi jogada numa casa diferente, com uma
família que não conhecia, e que lhe diziam que eram os seus pais e seus irmãos,
para ti apenas estranhos com quem não tinhas afinidade, e com quem tinhas que
viver e partilhar, coisas que nunca antes tiveste que partilhar, e recebias
tudo da tua madrinha, coisas que nós não tínhamos e que ela não nos dava.
Nós víamos-te receber essas coisas, que
nunca tínhamos tido, e isso também nos punha de parte e nos magoava, e muito, mas
disso não recordas, essa não é a tua história, não são as tuas mágoas.
Nós eramos a tua família que te amava, mas
a vida era muito dura para ela e tu não entendias.
Para ti, nessa cabeça de criança eram só
para ti os castigos, os maus-tratos, as coisas más, mas nós também os tínhamos,
os ralhetes as broncas as tareias. Tiveste alguma tareia? Não lembro. Mas nós
tínhamos e muitas, e a mãe coitadinha também levava, ao tentar proteger-nos.
Depois de um dia de trabalho duro no campo ela levava as tareias.
Disso tu não lembras, não estavas lá
ainda, não sabias, nem te davas conta.
Tirar-te algumas das coisas a que estavas
habituada, privar-te de determinadas regalias, para ti isso era excluir-te,
sentias-te excluída abandonada e não amada, sentias que nenhum de nós gostava
de ti. Mas eras amada, talvez de outra forma, mas eras.
Passado o tempo de adaptação tornamo-nos
amigas, sempre juntas naquela motoreta, corríamos tudo, bailes, festas e o mano
a proteger-nos para que ela nos deixasse sair. Lembras-te?
Talvez não soubesses disso na altura, mas
eras a minha melhor amiga apesar da ciumeira que deverias pressentir que eu
tinha e que isso era maldade, não era não, protegi-te de muita coisa, não
deixei que te magoassem, porque na adolescência já eramos mais crescidas, e eu
muito mais madura e sabida que tu, apesar da diferença de idade não ser muita.
Quando nos comparavam e diziam que nem
parecíamos irmãs, tu eras tão bonita e tão fininha, diziam, eu era rude e
maltratada, e me rebaixavam, me faziam sentir o patinho feio, mais coisas de
que não lembras, pois… não é a tua história.
E quando isso acontecia deveria ser mais
brusca, ainda hoje sou assim, quando me sinto magoada e rejeitada, mas sempre
tentei ser tua amiga, de alguma forma, sempre te protegíamos, e nem davas por
isso, porque proteção e amor é isso mesmo, não deixar que o cuidado seja
percebido.
Mas tu…
Tu eras muito orgulhosa, nunca davas o
braço a torcer por nada, a menina que sabia sempre tudo, sempre de nariz
empinado, tinhas alquém a quem bastava pedir o que quer que fosse e ela
dava-te, não era?
Roupas, guloseimas, brinquedos. E nós? Nós
não tínhamos nada.
Tens magoas? Claro que tens! Mas todos nós
temos, mas sempre só vemos aquilo que nos afeta a nós, raramente nos colocamos
no lugar dos outros, muito menos quando somos crianças, quando nos sentimos
intrusos, mal amados, e nem sequer entendemos o porquê, e porque há 40 anos, não
havia problemas de adolescentes, nem se falava em traumatismos tudo era normal
e fazia parte da vida que tínhamos, era assim mesmo e todos crescemos e nos
tornamos adultos, e essa parte ficou lá atrás, escondida num canto que não visitamos
muitas vezes e tentamos não lembrar tentamos que fique ali esquecida naquela gaveta das lembranças
más. Mas ás vezes sabe -se lá porquê, às vezes basta apenas um som uma palavra,
para nos fazer lembrar, e tudo vem á superfície, tudo aparece na nossa memória
tão vivido, tão real como se tivesse sido ontem, sim sei que vem, mas não é só
para ti.
A determinada altura afastamo-nos, a vida os
namorados, os caminhos diferentes que se nos apresentaram. Tanta vez tentei
falar contigo, que te abrisses comigo, mas esse teu orgulho não deixava, essa
tua altivez, que embora nem te desses conta te saáa pelos poros da pele, eu era
a mana mais velha mais refilona, mais humilde e sabia tirar partido disso, tu
sentias-te abandonada sem a tua madrinha, e sofreste muito eu sei que sofreste,
hoje sei mais ainda, que perdeste alguém que amavas mais que tudo, muito cedo e
te sentias completamente só e desamparada, mas se te afastavas de mim quando eu
me tentava aproximar, também não forçava muito.
Mas todos tínhamos mágoas e dores
profundas, mas protegíamo-nos uns aos outros embora não parecesse, embora
talvez nem lembres.
A vida nos manteve distantes, porque é
mesmo assim, e cada um segue as suas vidas as suas famílias toma as suas
decisões, e faz as suas escolhas e aprendemos a viver com elas, é a isso que se
chama crescer às vezes vamo-nos abaixo e lembramos essas coisas tristes do
passado, mas já passou, não podemos sofrer pelo que não podemos mudar, temos
que aceitar e continuar o curso das nossas vidas, o passado não se apaga e não
se pode reescrever, e tal como um rio corre em direção ao mar sem saber muito
bem porquê, temos que seguir em frente.
Foste e és uma grande mulher, talvez nunca
to tenha dito, sei que sofreste em silêncio, dores que só tu conheces e a quem
nunca contaste nem pediste ajuda, fechavas-te em ti mesmo e deixaste que esse
coração magoado, as magoas entranhadas nele, e esse teu orgulho vencessem.
As travessuras da vida, te trouxeram de
novo para mim, mais maduras, mais sofridas, talvez ainda mais magoadas, mas
também mais experientes, mais vividas, e sobretudo vivas, com outras alegrias e
tristezas, porque ninguém consegue travar o curso de um rio. E a vida ainda tem
muitas coisas para nós, para nos fazer rir e chorar, e viver intensamente todas
as emoções, e aprendi que não podemos perder um minuto, sem dizer aos que
amamos e que são importantes para nós, o quanto gostamos deles.
Por isso tudo e muito mais…
Estou aqui piriquita, sempre! E amo-te
minha irmã.
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